O que em comum tem autores como Clarice
Lispector, Hilda Hilst, Raduan Nassar, Hermann Hesse, Adélia Prado, João
Gilberto Noll, Antonio Lobo Antunes, entre outros?
A questão pela qual levantei os nomes
desses escritores tem haver com a dimensão espiritual, metafísica e
existencial de suas obras, com sua mística, seu mistério. A escrita
literária como autoconhecimento. Temas recorrentes na história da
literatura. Neles a linguagem ganha tom de experiência com o sagrado, o
transcendente, o não comunicado que se revela no entre. Esse meu
devaneio é de (des)ordem subjetiva, não tenho como concluir nem provar
nada, apenas sentir. Parto aqui da minha experiência como leitor e
escritor.
A arte de escrever não precisa nem deve
estar relacionada há um tema que consideramos como maior. Mas “penetrar
surdamente o reino das palavras”, como diz o poeta, deve ser um ritual,
uma comunhão, um encontro. E isso não significa que todo ritual deva ser
algo localizado no extraordinário. É no ordinário que as coisas sofrem
grandeza e desnudam a existência. Nos poetas, essa relação espiritual e
mística talvez seja mais recorrente do que nos prosadores, lugar de
invenção, de risco e desorientadora natural da razão que é a poesia. O
ritual cotidiano de Rubem Braga, por exemplo, com suas crônicas assume
aquilo que chamo de exercício transcendente com a linguagem. Em Rubem as
coisas não ditas saltam da página e abraçam o leitor. Clarice Lispector
é precisa ao dizer: “Então escrever é o modo de quem tem a palavra como
isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra –
a entrelinha – morde a isca, alguma coisa se escreveu” (Água Viva, p.
25). O que é escrito com a não-palavra cria o mistério no texto, o que
não se sabe, mas é captado pelos sentidos. O sagrado é um modo de se
relacionar com a palavra, é uma forma de oração, um rito, um fluxo
quântico, de consciência, e isso também não significa ser hermético ou
abstrato, nem sem enredo ou história que se conte. Tudo isso está
presente de maneiras diferentes nos autores que citei logo no início
dessa reflexão. Não se trata do que narrar e sim do como acontece à
experiência com a palavra. O gesto narrativo. Não é necessário falar de
Deus para que um texto seja dessa envergadura. Quando se lê Hilda Hilst
sabemos que a razão em si não consegue captar o que é dito nas
entrelinhas e nas imagens oceânicas que cria. O erótico em Hilda é um
assombro tântrico e místico no jogo de sua linguagem e, por isso, não se
banaliza.
Creio que a literatura produzida por
esses autores tem a capacidade de cuidar, de cicatrizar feridas, dores,
fissuras da alma, de curar da ignorância de nós mesmos. Se lidos em seus
hiatos, no vazio Zen dos seus textos, podem revelar um estado de
iluminação no leitor. Começam a dizer o indizível, a visualizar o
invisível. Dessa natureza criadora é que contempla o leitor, o vestígio
da experiência da escrita: as palavras que podemos lê-las.
Nenhum desses autores teve essa
pretensão, ou ao menos não declarada, nenhum deles quis ser um xamã ou
um curandeiro-escritor, mas todos, sem exceção, invadiram o misterioso
território do verbo que se fez carne, ritualisticamente, se inscreveram
como sábios no universo da imprecação mística da arte de escrever. Nesse
sentido, não são maiores nem menores que nenhum outro ser humano,
apenas existem na potência daquilo que são: escritores. E por terem
acolhido essa missão resignados em suas existências é que puderam
compreender a palavra como desígnio sagrado a penetrar o processo de
criação de seus contos e romances. Bebendo na fonte de todo mistério.
Marcelo Maluf
Sobre o autor
Marcelo Maluf nasceu em
1974, em Santa Bárbara D’Oeste – SP. Na década de 1990 como vocalista e
baterista, liderou a banda eletro-punk “Concreteness”, com quem gravou
um CD “Numberum” e um single “Se”. No início de 2000, foi convidado por
José Roberto Aguilar a integrar a banda performática, com quem gravou
dois CDs: “A Ética da prata bêbada”e “Anti-herói”. Estudou artes
visuais na UNESP e fez mestrado sobre a vida e obra do artista carioca
Hélio Oiticica. Escreveu as novelas infanto-juvenis: “Jorge do Pântano
que fica logo Ali” (FTD, 2008) e “Meu pai sabe voar” (FTD, 2009) em
parceria com Daniela Pinotti. Organizou a antologia de contos
infanto-juvenis “Era uma vez para Sempre” (Editora Terracota, 2009).
Publicou este ano “Esquece tudo agora”, seu primeiro livro de contos,
você pode conhecer aqui.
Origem da publicação: http://terracotaeditora.com.br/?p=1243
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